2017/10/31

O Escandalo que Não Passou Entre as Gotas da Chuva

A denúncia do escândalo vem das Capazes, o escandaloso acórdão vem de uns juízes que sobreviveram à república e se regem pela bíblia, pelo código penal de 1886 e citam civilizações onde é legal lapidar seres humanos.

Não conseguem citar a constituição de um Portugal laico e anti-discriminatório, nem o código penal em vigor, nem o sentimento dominante da sociedade contemporânea que lhes paga o bem viver.

Não podem. Não podem julgar fora da lei. Não podem ser juízes. Se não respeitam a lei fundamental do país onde julgam, não podem ocupar cargos que lhes permitam impor a lei da selva, cargos que lhes permitam impor um estado animal, do qual, com tanta dificuldade, nos vamos afastando tão lentamente.

Já foi grande a indignação, escreveram-se artigos, convocaram-se manifestações, subscreveram-se petições, preparam-se processos contra o cromagnismo misógino, mas cuidado, já começaram a chegar os baldes de lixivia. Já por aí circulam tentativas de limpar a lama que indelevelmente sujou as magistraturas, todas. Já as corporações e os "corporadores" andam a deitar detergente em cima dos dois trogloditas, dos que lhes permitiram chegar a desembargadores e dos que se afirmam impotentes para lhes cercear o fundamentalismo faccioso.

E respondendo às tentativas de branqueamento do (im)branqueável importa afirmar que:

Não, o tema não está gasto! Enquanto uma coisa “mononeurónica”, para quem romances religiosos são tábuas da lei, exercer uma magistratura, qualquer magistratura, o tema não está gasto.

Ao contrário do que tentam fazer crer certos lavadores (corporativos? solidários? encomendados?) o que, no acórdão do misógino, é de facto relevante, não é a sentença, mas sim a argumentação. O que motivou toda esta indignação é a invocação de argumentos retirados de romances religiosos, de códigos penais monárquicos e de procedimentos inspirados em estados confessionais, para tentar justificar uma sentença, e sim, aí sim, também ela claramente inapropriada.

Várias e diversificadas serão as tentativas de diminuir o caráter criminosamente inaceitável dos argumentos do misógino, incluindo o de que seriam simples parvoíces que importaria desvalorizar, quanto mais não fosse, em nome da credibilização da justiça. Não, primeiro não são simples parvoíces, e segundo, não podemos tentar salvaguardar a credibilidade de uma (in)justiça que produz escritos destes. Primeiro porque sendo parvoíces, condescendo, são principalmente o reflexo da mentalidade de um troglodita que chegou a juiz da relação. Como? Como é que isto julga, como é que é juiz e como é que subiu de um tribunal de vão de escada até à relação? E segundo, não só não me compete, a mim, tentar salvaguardar esta justiça, esta justiça que permite a produção de apelos ao que de mais baixo e vil existe no ser humano, como, muito pelo contrário, enquanto cidadão de um estado de direito democrático, constitucionalmente laico e igualitário, me sinto obrigado a repudiá-la, denunciá-la e a contestá-la.



Adivinhando longas discussões, começo já aqui a coligir artigos, escritos e referências onde se argumenta a necessidade de reformar a justiça que, importa afirmá-lo sempre, por ser uma justiça de classe, é injusta para os deserdados, quaisquer que eles sejam.

Um Acordão (De) Lapidar
(Inês Ferreira Leite, in Capazes 2017/10/22)

«Por outro lado, a conduta do arguido ocorreu num contexto de adultério praticado pela assistente. Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte.

Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, artigo 372.º) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse.

Com estas referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher. Foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o arguido X cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou o acto de agressão, como bem se considerou na sentença recorrida.»

No dia 11 de outubro de 2017 – sim, é mesmo 2017, e não 1617 – o Tribunal da Relação do Porto proferiu o Acórdão onde se podem ler estas passagens. São passagens escritas pelo relator, o Juiz Desembargador Neto de Moura, assinadas pela Juíza Desembargadora Maria Luísa Arantes, e podem consultar o acórdão, em texto integral, aqui.

Esta decisão deveria deixar-nos a todos e a todas muitíssimo preocupad@s. Não sendo, exatamente, um caso inédito de decisão judicial machista ou que perpetua uma visão machista e repressiva do papel da mulher na sociedade (e, por conseguinte, do papel do homem também, já que o machismo é opressor dos dois géneros), esta decisão consegue superar as nossas piores expectativas no que toca ao bom senso, ponderação, capacidade crítica e respeito pela constituição (que esperaríamos dos nossos tribunais). O tema é sério, é grave, e convoca-nos a todos e todas para uma reflexão mais profunda sobre o amor, o casamento, e a violência – enquanto fenómenos socioculturais – e, correspondentemente, sobre os limites constitucionalmente impostos ao sistema legal e aos tribunais quando são chamados a regular certos aspetos ou dimensões do que pertence, em primeira linha, ao nosso núcleo mais íntimo de privacidade e liberdade. A seriedade do tema pede que seja feita uma análise calma e profunda e, por isso, a Capazes vai reunir e publicar, nos próximos dias, uma série de textos com perspetivas diversas sobre o tema. Iremos também apresentar uma queixa junto do Conselho Superior de Magistratura e junto da Comissão para a Igualdade.

Para já, ficam algumas ideias essenciais para reflexão.

Regressando ao acórdão, sabemos que estava em causa a escolha da pena justa para dois homens que foram condenados por crimes de violência doméstica e sequestro. A vítima, ex-mulher de um dos arguidos, manteve por dois meses uma relação extraconjugal com o outro arguido, tendo terminado essa relação por vontade dela. Ao longo de vários meses, a vítima foi perseguida pelo ex-amante, que a confrontava no local de trabalho e a ia ameaçando por mensagens, utilizando a posse de filmagens de teor sexual da vítima para a pressionar a reatar a relação ou, pelo menos, a manter relações sexuais com ele (o que a vítima recusou). O ex-amante acabou por contar o caso ao marido da vítima (o outro arguido), tendo ocorrido a separação do casal em março de 2015. O marido não terá ficado apaziguado com o fim da relação, pois enviou também mensagens insultuosas e ameaçadoras à vítima. O casal tem uma filha menor, à qual o pai disse várias vezes que queria matar a mãe e matar-se a seguir. O ex-marido da vítima tinha uma depressão (anterior aos factos), tinha estado internado e saído contra parecer médico. No dia 29 de junho de 2015, os dois arguidos, em conjunto (ainda que não de modo previamente combinado), encurralaram a vítima; de seguida, o arguido X (ex-marido), estando a vítima agarrada pelo arguido Y (ex-amante), agrediu-a violentamente com uma moca cheia de pregos. Aproveitando um escorregão do ex-marido e alguma distração dos arguidos, a vítima conseguiu fugir e pedir ajuda. Não sabemos o que se teria passado, caso os arguidos não tivessem sido interrompidos. Mas sabemos que o ex-marido da vítima mantinha várias armas de fogo em casa.

O Tribunal Judicial de Felgueiras entendeu que a culpa era muito diminuta e que não havia perigo de reincidência, pelo que seria bastante a aplicação de uma pena suspensa. Esta decisão – face ao que sabemos da violência doméstica, da sua caracterização sociocultural e do perfil dos arguidos – é altamente discutível e, na minha opinião, muito provavelmente temerária face ao perigo real destes dois arguidos. Contudo, a decisão da primeira instância utiliza argumentação dogmática penalista (do pouco que se sabe, pois não temos o texto integral da primeira condenação) sendo por isso, em princípio, compatível com a lei e a constituição.

Infelizmente, o cenário agravou-se drasticamente no Tribunal da Relação do Porto. A fundamentação transcrita em cima é – entre muitas outras coisas – perigosa. Sabemos que o machismo mata. E não se trata de uma frase simbólica. O facto de existirem expectativas rígidas sobre o papel das mulheres na sociedade – as mulheres devem ser mais caseiras, não devem sair sozinhas, muito menos à noite, as mulheres devem ser recatadas, as mulheres devem ser boas mães e boas donas de casa, as mulheres devem sujeitar-se à vontade dos maridos, as mulheres são a face visível da honra dos homens, pelo que é crucial manter um forte controlo sobre o comportamento sexual da mulher, já que a virtude da mulher é o espelho do caráter do homens, entre outras – são fonte de conflitos sérios nas relações de intimidade e, muitas vezes, as razões da violência e do homicídio.

Em textos futuros, irei falar-vos dos maridos que matam as mulheres porque elas se recusam a ter sexo com eles (mas, infelizmente, ainda há juristas que acham que podem falar de um “dever de manter relações sexuais na constância do casamento”), bem como das decisões judiciais que o afirmam, ignorando frontalmente a proteção constitucional da liberdade sexual. Vou falar-vos dos maridos que matam as mulheres porque não são boas donas de casa (mas ainda há quem ache muito bem que haja livros só para meninas, dedicados a temas domésticos), e dos maridos que matam as mulheres porque elas têm casos (ou eles inventam que têm). Mas a lei ainda fala do dever de fidelidade (mais uma vez, como se a constituição previsse exceções conjugais à liberdade sexual) e a honra do homem ainda hoje é, principalmente em meios menos urbanos, o reflexo (im)perfeito da suposta virtude da mulher. Também vou falar dos acórdãos que explicam a violência doméstica ou o homicídio com a recusa de sexo da mulher, ou com o facto de ser desleixada com as suas tarefas domésticas. De como os tribunais vão considerando compreensível que o marido mate a mulher adúltera, mas já aplicam penas pesadas às mulheres que – pelas mesmas razões – matam os maridos. Se estão chocad@s com esta decisão, preparem-se. Não é completamente inédita. É só mais ousada do que as outras, nas quais, sob a capa de argumentos “jurídicos”, se vai dizendo mais ou menos o mesmo.

Estes contextos não são “normais”, embora possam ocorrer em números preocupantes. Estes contextos não são desejáveis – implicam um afastamento da normatividade e colocam em causa bens jurídicos muito valiosos – devem ser censurados, combatidos. Estes contextos não são irrelevantes na escolha da pena, podem ser ponderados. O que não podem é ser tomados como normalidade numa decisão judicial, nem valorados de modo positivo, como se o ideal atual fosse a apologia da mulher virtuosa e honesta, associada a uma forte repressão do adultério, sendo então compreensível e desculpável a violência exercida pelo marido (e pelo amante, já agora!) contra a mulher adúltera.

Desde já, como mulher, tenho que reagir a esta decisão, e tenho que gritar, na plenitude da minha liberdade:

– Não aceito esta argumentação, que é machista, é discriminatória (contrária à constituição), mas pior, muito pior, é opressiva das mulheres, e é extremamente perigosa para a vida de tantas mulheres;

– Não aceito que um juiz, em representação do Estado, fale por mim, em nome de tod@s nós, de lapidação e do homicídio por honra da mulher adúltera em tons de normalidade, quase saudosistas;

– Não aceito que a minha liberdade sexual tenha um valor distinto da dos homens, não aceito que o meu comportamento sexual, livre, esteja ligado à honra ou à virilidade dos homens;

– Não aceito, por isso, que o exercício da minha liberdade sexual seja visto como pretexto para a violência e para o homicídio.

Quando um juiz fala, é o Estado que fala, fala em nome de tod@s nós (os juízes decidem de acordo com a constituição e em nome do povo). A democracia só funciona quando os juízes respeitam e refletem os novos contextos sociais democraticamente construídos, reconhecidos na Constituição e tutelados pela lei. Não funciona quando os juízes vivem no passado e decidem com base nas suas convicções pessoais. Em meu nome, pela nossa saúde, pela vida e pela liberdade das mulheres portuguesas, espero uma reflexão séria por parte da sociedade e do Conselho Superior de Magistratura, em resposta a este caso, como símbolo de um problema maior e mais amplo, na sociedade, e nos tribunais.

O linchamento do juiz Neto de Moura
(Maria Luisa Costa Dias, in facebook  2017/10/31)

Diz a ministra da Justiça que "um acórdão não faz o sistema". Não. O sistema fez este acórdão. E todos os outros como este, e o juiz que os escreveu, e as juízas que os co-assinaram, e os que deles não recorreram, que não os denunciaram, que calaram tudo isto e os que nos querem agora mandar calar.

Confesso: quando vi partilhada no Facebook uma página com a identificação do Tribunal da Relação do Porto na qual se invocava o adultério da mulher, a Bíblia e a lapidação como fundamentação da atenuação da pena de crimes de violência doméstica não acreditei que fosse possível. Não é que não esteja farta de conhecer o machismo do sistema judicial português ou decisões que demonstram total ignorância das leis e desrespeitam a Constituição; não que não conheça a propensão de alguns magistrados para fazer da justiça braço armado dos seus preconceitos. Mas pareceu-me mesmo assim demais que alguém na judicatura portuguesa falasse, no século XXI e a propósito de um caso de violência doméstica, de "adultério", lapidação e do Código Penal de 1886. Achei que quando muito seria parte da argumentação de algum advogado alucinado. E mesmo quando o JN surgiu com a notícia continuei na minha: só tendo acesso a todo o acórdão poderia opinar.

Ou seja: apesar de não ter uma boa opinião da justiça portuguesa, tinha-a mesmo assim bem melhor que aquela que ela provou merecer. E sucede que, desde a notícia inicial, essa opinião tem vindo sempre a piorar. Primeiro porque se soube que o relator daquele acórdão, o homem que escreveu as linhas que não acreditei poderem vir da pena de um juiz português em 2017, já tinha lavrado, ao longo dos anos, vários semelhantes, sem que disso houvesse notícia, escândalo, recurso, seja o que for; que o referido juiz tem nota "muito bom", a máxima na sua profissão; que outros juízes, aliás juízas, co-assinaram esses acórdãos sem um único voto de vencido; que aquela que o fez no mais recente assumiu a colegas, de acordo com o Expresso, não ter lido a fundamentação - para dizer que se a tivesse lido não o assinaria. É dose. Mas continua.

O Conselho Superior de Magistratura, o qual tem a função de fiscalizar o trabalho dos juízes, começou a semana a fazer um comunicado em que frisava ser necessário que as decisões dos tribunais respeitassem a Constituição e a lei, admitindo estar-se perante "proclamações arcaicas" mas não anunciava qualquer ação. Foi preciso tanto o PR como a ministra da Justiça pronunciarem-se sobre o assunto para se aprestar a abrir um inquérito. A Associação Sindical dos Juízes, na pessoa da sua presidente, Manuela Paupério, manifestou a sua indignação com o "linchamento público" e o "recurso ao insulto" - contra o juiz Neto de Moura, note-se. E o Presidente do Supremo Tribunal, embora tenha criticado a "manifestação de crenças pessoais e de estados de alma, ou as formulações da linguagem de subjectividade excessiva, [que] não são com certeza prestáveis como argumentação e não contribuem para a qualidade da jurisprudência" nas decisões judiciais, mostrou-se escandalizado com a "intensidade e a violência das críticas" - contra o juiz, mais uma vez. Afirmando que estas são "objectivamente um serviço prestado não às vítimas mas a todos aqueles que, sentados na bancada ou chorando lágrimas de crocodilo, fazem o jogo da discriminação e da perda de confiança na justiça", António Henriques Gaspar lembrou-se no entanto da vítima. Para dizer que "a intensidade e o alarido no espaço público" podem ter-lhe ocasionado uma "vitimização fora do processo, sem mandato, sem verdade", com um "efeito devastador, esse sim, já sem remédio na dignidade da pessoa humana".

Uau. Mas ainda não acabou: vimos também a Procuradora Geral da República recusar, sem o justificar, e apesar de estar dentro do prazo (termina hoje), recorrer do acórdão para o Tribunal Constitucional. É verdade que o nosso sistema não admite recurso de decisões judiciais para o TC - facto que o constitucionalista Reis Novais frisou ao DN, lamentando-o - mas é certo também que em certas circunstâncias tem admitido recurso relativo à interpretação de normas em decisões. Pelo que nada se perderia em recorrer: o mais que podia suceder era o recurso ser recusado. Por que não tentar, então? Como aceitar que um acórdão com as características descritas, que para mais parece nem ter resultado da apreciação de um colectivo de juízes (como seria obrigatório), transite em julgado sem que no sistema se tente tudo para a tal obviar? E como, perante tudo isto, compreender que a preocupação maior dos juízes que falam publicamente sobre o assunto seja a corporativa, tendo o desplante de acusar quem critica esse corporativismo e se espanta ante a falta de resposta do sistema de querer "descredibilizar a justiça"? Como é possível sequer aventar-se que é a revolta ante o julgamento insultuoso, humilhante e atrozmente machista que o acórdão fez da vítima que a revitimiza?

Disse a ministra da Justiça, ela própria uma magistrada do MP, que "um acórdão não faz o sistema". Não. O sistema fez este acórdão. E todos os outros como este, e o juiz que os escreveu, e as juízas que os co-assinaram, e os advogados e procuradores que deles não recorreram, que não os denunciaram, que calaram tudo isto e os que nos querem agora mandar calar. Um sistema que isto fez e faz, que não se incomoda - nem repara - com o linchamento de vítimas mas cerra fileiras para proteger os seus não é um sistema de justiça. É outra coisa qualquer.

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